Política tóxica do Brasil mancha canarinho, camisa da seleção
Enquanto o Brasil começa a disputar a Copa do Mundo na quinta-feira, favorito para conquistar o sexto título, o que normalmente seria um momento de alegria na maior nação da América Latina, está sendo atenuado pela divisão persistente após a terrível eleição presidencial do mês passado. A divisão está rasgando as costuras do canarinhoa outrora sagrada camisa do “canáriozinho”, que foi cooptada como roupa de campanha antes, durante e depois da votação pelos apoiadores do “Trump dos Trópicos” — o perdedor eleitoral Jair Bolsonaro.
Acampamentos montados em todo o país pelos partidários do presidente cessante para protestar contra a vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva são mares de amarelo e verde. Para muitos brasileiros, a adoção das cores pelos bolsonaristas está manchando uma camisa que ficou famosa por gerações de graciosos grandes nomes do Belo Jogo, de Pelé a Ronaldinho.
“Eu tenho uma camisa amarela. Eu usava”, disse Monteiro, mas “cara, é muito difícil [now]. A maneira como eles se apropriaram da camisa. É embaraçoso usá-lo. Tornou-se o símbolo da extrema-direita brasileira.”
Bolsonaro atraiu críticas por sua rejeição à pandemia de coronavírus, seu apoio ao desenvolvimento comercial da floresta amazônica e seus insultos contra mulheres, minorias e a comunidade LGBTQ. Ele perdeu por pouco o segundo e último turno da eleição em 30 de outubro; simpatizantes invadiram bases militares para reclamar, sem provas, de fraude eleitoral.
Para um país do tamanho de um continente e louco por futebol, que normalmente estaria compartilhando um sonho coletivo para o hexa – um sexto título histórico – a candidatura ao campeonato global está levantando uma questão profundamente pessoal. A corrida da equipe este ano servirá como um momento de cura nacional? Ou irá cristalizar a forma como a era da política tóxica – ataques pessoais superaquecidos, violência entre eleitores, acusações infundadas de uma eleição roubada – pode deixar feridas duradouras em uma nação?
A seleção nacional, tipicamente um farol de orgulho nacional, já é um microcosmo da política polarizada do país. Vários jogadores apoiaram Bolsonaro pelo menos tacitamente, com o apoio mais claro vindo da maior estrela: Neymar. A celebridade da seleção postou um vídeo TikTok de si mesmo cantando uma música de campanha e se juntou ao titular em uma transmissão ao vivo. Ele prometeu dedicar um gol na Copa do Mundo ao presidente.
Tite, o técnico nacional, por sua vez, lamentou publicamente a injeção de política nos assuntos da equipe. Se o Brasil, a nação mais campeã da história da Copa do Mundo, levar novamente a coroa, ele prometeu quebrar uma tradição desde os anos 1950 ao se recusar a participar de qualquer visita da equipe à capital para se encontrar com o presidente em exercício, seja Bolsonaro em dezembro ou Lula em janeiro.
Questionado sobre o conflito público em torno da camisa da seleção no mês passado, ele disse ao jornal O Globo que não queria participar da guerra ideológica: “Eu digo a eles: ‘essa batalha fica com vocês’”.
O clima nacional atual contrasta fortemente com o carnaval eletrizante que varreu o país em 2002, quando os brasileiros torceram como um enquanto seu time rugia para o quinto título da Copa do Mundo, quebrando o recorde. Após a votação que os apoiadores de Bolsonaro afirmam ter sido roubada sem provas, alguns pediram boicotes a empresas de esquerda. Alguns bolsonaristas sugeriram que os progressistas adornassem seus negócios com a estrela vermelha do Partido dos Trabalhadores de Lula, para que os compradores pudessem identificar sua lealdade política – uma ideia que alguns da esquerda dizem remontar às estrelas de David amarelas pintadas em empresas judaicas durante a ascensão de o Partido Nazista na Alemanha.
A proprietária de um café na cidade brasileira de Goiânia disse que seu negócio foi adicionado a uma lista de boicote. A mulher, que falou sob condição de anonimato por medo de represálias, disse que seus clientes têm inclinação progressiva, o que limita o prejuízo financeiro. Mas ela ficou com medo quando os apoiadores de Bolsonaro a atacaram online, repostando suas opiniões políticas com fotos privadas de família tiradas de sua conta no Instagram e escrevendo críticas negativas de seu café no Google.
“Talvez esses ataques tenham funcionado”, disse ela, “porque estou pensando em não falar mais tanto sobre política”.
A camisa amarela e verde é onipresente entre os milhares de apoiadores de Bolsonaro que protestam contra os resultados das eleições no Centro de Comando Militar do Sudeste do Brasil, em São Paulo, um dos vários protestos em andamento desde a noite da eleição. Alguns manifestantes exigiram intervenção militar para manter Bolsonaro no cargo. Vendedores na multidão venderam pipoca em sacos de papel verde e amarelo com o logotipo da Copa do Mundo no Catar.
Luiz Cláudio Pereira, um pequeno empresário aposentado, foi um dos muitos que vestiram a camisa nacional na semana passada fora da base militar de São Paulo. O apoiador de Bolsonaro disse que é mais um símbolo de nacionalismo do que de esporte. “Para mim, a camisa representa o Brasil, não a seleção.”
Ele disse que os torcedores de Lula estavam evitando a camisa por falta de orgulho nacional.
“Acho que é falta de patriotismo”, disse ele. “É por isso que eles não querem usá-lo. Não acho que seja um símbolo de Bolsonaro.”
A Nike, que produz a camisa oficial, não respondeu a um pedido de números de vendas. Reportagens na imprensa brasileira sugerem um aumento nas vendas domésticas antes das eleições no Brasil – em parte impulsionadas pelos apoiadores de Bolsonaro. Mas a camisa alternativa do Brasil, um tom de azul profundo, também ganhou popularidade, especialmente entre aqueles incomodados com a associação da camisa amarela e verde com a direita política.
“A divisão da sociedade brasileira veio para ficar. Não vai acabar por causa da Copa do Mundo”, disse Marcos Nobre, analista político e autor. “Também há uma batalha da esquerda para reivindicar a camisa nacional para os progressistas. Talvez dê certo, mas as pessoas ainda vão ver a camisa da seleção diferente depois de tudo isso”.
Em uma nação onde crianças pobres sonham em sair das favelas com o talento do futebol, e onde santuários religiosos são dedicados ao esporte, a camisa amarela e verde tem uma história política surpreendentemente carregada. Nasceu de uma derrota humilhante – a derrota do Brasil na Copa do Mundo de 1950 para o minúsculo vizinho Uruguai – e de um patriotismo descarado. Um concurso de 1953 para substituir o que era então um uniforme predominantemente branco tinha um requisito: que usasse o amarelo, verde, azul e branco da bandeira brasileira.
A vencedora, desenhada pelo ilustrador de jornal Aldyr Schlee, de 19 anos, foi uma camisa com campo amarelo – daí canarinho – forrada com detalhes em verde Kelly e usada com shorts azuis e meias brancas. Anos depois, Schlee seria preso por escritos que iam contra a ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985.
Em 1970, quando a ditadura identificou uma vitória na Copa do Mundo como um objetivo de propaganda doméstica e nomeou um general de brigada para chefiar sua delegação no torneio, muitos brasileiros de esquerda rejeitaram a camisa e juraram não torcer pelo time. Alguns – incluindo a futura presidente Dilma Rousseff, então na prisão como dissidente – descreveram torcer pelo Brasil de qualquer maneira.
A polarização em torno da camisa diminuiu na era da democracia, mas voltou com tudo em 2013, quando manifestantes contra o governo de esquerda de Dilma Rousseff tomaram o símbolo. Nos últimos quatro anos, a camisa virou marca registrada dos bolsonaristas de carteirinha, com o incentivo do presidente.
Bolsonaro pediu a seus apoiadores que o usassem no dia da eleição.
“Cada vez mais o Brasil está pintado de verde e amarelo”, disse ele em um podcast de agosto. “Não é para o copo; é pelo patriotismo. Parte disso por minha causa? Sim.”
Alguns da esquerda brasileira estão tentando recuperar a camisa. Alguns, inclusive a mulher de Lula, estão postando selfies com a camisa e fazendo um L com as mãos para o presidente eleito. Alguns usam versões com uma estrela vermelha, símbolo do Partido dos Trabalhadores de Lula, ou o número 13, designação atribuída ao partido nas cédulas eleitorais.
Outros dizem que é tarde demais.
“A camisa amarela está na rua pedindo intervenção militar, pedindo golpe de estado, pedindo a volta da ditadura”, disse a escritora Milly Lacombe em um podcast na semana passada. “Posso estar errado, mas acho que a camisa amarela é irremediável. Não vejo como… podemos recuperar esta camisa.
Lula disse este mês que vestiria com orgulho a camisa durante a Copa do Mundo.
“Não precisamos ter vergonha de vestir nossa camisa verde e amarela”, disse. “O verde e amarelo não é de candidato. Não pertence a um partido. O verde e o amarelo são as cores de 213 milhões de pessoas que amam este país.”
Alguns aqui estão esperançosos de que a Copa do Mundo possa começar a curar uma nação dividida.
Juca Kfouri, um dos jornalistas esportivos mais celebrados do país, disse que até a esquerda perdoaria Neymar se ele voasse nos próximos dias. “Se ele tiver uma taça brilhante, as pessoas vão voltar. Mesmo aqueles que não gostam dele profundamente o terão como ídolo.”
Com a vitória de Lula, disse Kfouri, “o clima de ódio” começou a desaparecer.
“Acho que a Copa do Mundo vai ter esse caráter, de as pessoas irem juntas para a rua, e não perguntarem em quem votaram”, disse. “Talvez haja uma porcentagem maior de camisas azuis do que amarelas. Talvez ainda haja quem relute em vestir a camisa amarela. Mas as pessoas que não têm o azul vão usar o amarelo de qualquer maneira. Porque é a cor do Brasil.”